Deficiência endocanabinoide e implicações nas doenças intestinais

Por Ana Gabriela Baptista * | 13 de março de 2021

O Sistema Endocanabinoide (SEC) é conhecido por modular várias funções do corpo humano, incluindo humor, ansiedade, recuperação da memória de eventos traumáticos e coordena diretamente a propulsão, secreção, inflamação e nocicepção do intestino grosso, ofertando um caminho a novas terapias para a síndrome do intestino irritável.

A síndrome do intestino irritável (SII) é um distúrbio caracterizado por dor abdominal, espasmos e movimentos intestinais alterados, seja predominantemente diarreia, predominantemente constipação ou alternando entre esses estados. Considerada uma condição crônica, sintomas gastrointestinais significativos como intoxicação alimentar ou administração de antibióticos, podem gerar crises que persistem, muitas vezes, indefinidamente. 

Ilustração/Shutterstock

Os ataques estão associados à ansiedade e à depressão, sendo possível que alguns pacientes possam desenvolver um ciclo vicioso de agravamento dos sintomas físicos e psicológicos. Atualmente, são prescritos aos pacientes com SII opioides, anticolinérgicos e antidepressivos, porém com resultados insatisfatórios, tendo uma necessidade clínica urgente por tratamentos alternativos.

O SEC é expresso em todo o corpo humano e controla ativamente a homeostase intestinal. Os receptores mais bem caracterizados são os receptores canabinoides CB1 e CB2. O CB1 foi encontrado no tecido que reveste o intestino e no sistema nervoso entérico, redes de neurônios que se estendem por todo o trato gastrointestinal e, fisiologicamente, a ativação do CB1 aumenta o tônus ​​dos músculos do intestino delgado e grosso e inibe a motilidade do intestino grosso. 

Além disso, a ativação do CB1, via sistema purinérgico, que desempenha um papel fundamental como neuromodulador e no controle da homeostase, inibe as contrações espontâneas e modula a atividade da neurotransmissão vagal, reduzindo o peristaltismo intestinal, ou seja, o movimento de contração e relaxamento do intestino. O receptor CB2, no entanto, foi encontrado em neurônios entéricos, mas é predominantemente expresso por células imunes intestinais. Ter como alvo o CB2 intestinal diminui a inflamação por meio da redução da produção de citocinas e quimiocinas pelas células imunes ativadas. O CB2 controla a motilidade intestinal, e sua ativação retarda o trânsito intestinal.

Ilustração/Rafael Garrett, doutorando em química do IQ-UFRJ

A anandamida (ANA) e 2-araquidonil glicerol (2-AG) são os endocanabinoides mais estudados. Estão envolvidos no controle da ingestão alimentar e da fome. Especificamente, a anandamida parece regular o apetite e o equilíbrio energético; enquanto o 2-AG pode servir como um sinal geral de fome. A anandamida, via CB2, também desempenha um papel fundamental na manutenção da saúde imunológica do intestino.

Após a sua ativação, os endocanabinoides são inativados por enzimas presente nas células nervosas e fibras ao longo das camadas da mucosa muscular do intestino. Essa inibição reduz significativamente a colite (inflamação do cólon) observado em estudo experimental em modelo animal, por meio do aumento nos níveis de 2-AG ou anandamida, respectivamente, e a estimulação da sinalização de CB1 e CB2.

São outros endocanabinoides atípicos, cujas estruturas se assemelham aos endocanabinoides clássicos, porém, não se ligam a receptores CB, estão envolvidos no controle de várias funções, incluindo ingestão de alimentos, neuroproteção, percepção da dor e inflamação. Os canais de potencial receptor transiente (TRP), amplamente expressos em todo o trato digestivo, estão envolvidos em vários processos: paladar, quimio e mecanossensação, termorregulação, dor e hiperalgesia, função da mucosa, homeostase intestinal e controle da motilidade, entre outros, também colaboram com o sistema endocanabinoide.

Jonatan Sarmento/Editora Abril

O eixo intestino-cérebro também é modulado pelo sistema endocanabinoide. No intestino, os receptores do SEC estão envolvidos na transdução sensorial de um grande número de estímulos externos e nocivos. No cérebro, o SEC controla náuseas e vômitos, especialmente por meio de receptores CB1, e alterações induzidas por estresse no SEC foram associadas a alterações nas sensações viscerais. O principal papel do SEC no trato intestinal é controlar as contrações intestinais. Além disso, modula as sensações viscerais, a inflamação intestinal e as comunicações intestino-cerebrais; funções que parecem estar desreguladas na síndrome do intestino irritável.

A Deficiência Endocanabinoide Clínica (DEC) foi confirmada como uma possível justificativa para uma série de patologias de difícil caracterização, que apresentam hiperalgesia, ansiedade e depressão, enxaqueca, fibromialgia e síndrome do intestino irritável se enquadram nesta categoria, muitas vezes mostrando comorbidade nos três diagnósticos. 

Ilustração/PnFree

A DEC ocorre como um distúrbio congênito ou como resultado de alterações genéticas. Algumas dessas mudanças podem se originar por estresse crônico, que impacta profundamente o sistema endocanabinoide. Isso resulta em níveis reduzidos de CB1 nos neurônios sensoriais localizados nos órgãos pélvicos, incluindo o cólon, que é uma característica da dor visceral. O estresse no estágio inicial da vida também é um importante contribuinte para o desenvolvimento da síndrome do intestino irritável e está associado a alterações genéticas levando à hipersensibilidade visceral. 

A relevância do estresse pediátrico na SII é apoiada pelo fato de que a colite infantil, caracterizada por sensibilidade visceral e disforia refratária, parece ser compensada pelos endocanabinoides presentes no leite materno, razão pela qual se acredita que esta condição também pode ser uma deficiência endocanabinoide clínica. A saúde intestinal sem dor e manutenção de peso corporal equilibrado parece exigir uma interação complexa entre dieta, flora intestinal e equilíbrio endocanabinoide.  

Tendo essas evidências em vista, o estresse crônico causa desregulação ou perda de CB1, ansiedade e induz a dor visceral, promovendo mudanças na região via endocanabinoide em neurônios sensoriais que atuam na região pélvica. Assim, há uma justificativa para o uso de compostos que aumentam os níveis de endocanabinoides, para tratar a hipersensibilidade e a dor na síndrome do intestino irritável, como o canabidiol.

Como o sistema endocanabinoide é conhecido por diminuir a motilidade, os efeitos do dronabinol, um agonista não seletivo dos receptores canabinoides, foram testados em pacientes com síndrome do intestino irritável. Em ensaio clínico, o dronabinol reduziu a motilidade do cólon em jejum em todos os pacientes, melhorando, inclusive, a sensibilidade visceral e o relaxamento do cólon, conforme mostrado em ensaio duplo-cego controlado por placebo. Baixos níveis de endocanabinoides estão associados a cólicas abdominais, e sua administração pode ser uma ferramenta útil no tratamento da dor nesta condição.

Embora a causa da síndrome do intestino irritável não esteja totalmente esclarecida, direcionar o sistema endocanabinoide pode representar uma estratégia promissora para modular a motilidade intestinal, dor visceral, inflamação intestinal de baixo grau e alteração do eixo intestino-cérebro, todas as características que podem melhorar o início dos sintomas dessa condição. Também é evidente que uma dieta adequada e o gerenciamento do estresse são medidas necessárias para aumentar os efeitos benéficos de qualquer um dos agentes sugeridos, promovendo maior qualidade de vida ao paciente.

O uso dos canabinoides apresenta um perfil de segurança bom, mostrando-se benéficos na melhoria dos sintomas da síndrome do intestino irritável, capazes de diminuir os espasmos abdominais, cólicas e dor visceral. No entanto, são necessários mais estudos clínicos randomizados controlados por placebo para compreender com clareza o uso dos canabinoides na síndrome do intestino irritável.

Referência: Brugnatelli et al. Irritable Bowel Syndrome: Manipulating the Endocannabinoid System as First-Line Treatment. Front. Neurosci. 2020.

* Ana Gabriela Baptista é Consultora Técnica e Perita Judicial em Terapia Canabinoide, atuante com P&D de Produtos Farmacêuticos – www.instagram.com/baptistaanagabriela

One thought on “Deficiência endocanabinoide e implicações nas doenças intestinais

  • março 14, 2021 em 1:47 pm
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    Muito importante estudo sobre causas que provocam irritações ou dores intestinais é bom saber sobre tratamento.

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