Cannabis Medicinal: o impacto do preconceito histórico na luta pelo acesso à planta sob a ótica advocatícia

Por Lucas Araújo | 08 de setembro de 2021

O debate acerca da legalização da Cannabis no Brasil, principalmente com fins medicinais, atravessa gerações e cresce progressivamente com o passar do tempo, respaldado sobretudo pelo avanço da ciência e facilitação do acesso à informação, que tornam públicas as diversas utilidades da planta em prol da saúde, bem estar e qualidade de vida de parte da população. Na medida em que essa pauta ganha atenção e visibilidade, se traz cada vez mais à tona a origem dessa discussão: por que é proibido? Por que tantas pessoas sofrem com esse atraso em plena era de modernidade e fácil acesso à informação?

Para falar do assunto, o site Green Science Times ouviu o advogado criminalista Arthur Ângelo, que teve formação acadêmica na Universidade Federal da Paraíba e atua com o propósito de auxiliar pessoas e empresas no acesso à Cannabis Medicinal, além de defender clientes presos por portar a planta, muitas vezes para uso medicinal. Conversamos sobre o impacto do preconceito historicamente enraizado nos dias atuais e seus reflexos na forma como a cannabis é tratada socialmente e perante a lei.

Dentro desses reflexos, podemos ver tanto no dia a dia, como na entrevista, alguns exemplos grotescos. Chefe de estado desdenhando de um projeto de lei que poderia ser um facilitador na vida de parte da população e na economia nacional, abusos policiais contra associações e decisões jurídicas desproporcionais contra pessoas que não oferecem ameaça, dentre outras sequelas que o retrocesso causou na sociedade.

Mas, além dos problemas, também foi falado sobre luz no fim do túnel: a tendência de avanço da pauta, a possibilidade desse progresso ser acelerado com o crescimento de outros debates e descobertas e exemplos de outros países que podem endossar a luta pelo acesso à cannabis medicinal no Brasil.

GST – Vamos começar apresentando nosso entrevistado e sua relação com a cannabis medicinal. Quando nasceu seu interesse por essa causa? Quando você decidiu que iria se dedicar profissionalmente em prol dessa luta?

AA – Embora tenha realizado toda a formação acadêmica na UFPB em João Pessoa e Santa Rita, sou nascido em Recife e crescido na comunidade da Estrada dos Remédios no Recife. Desde adolescente refletia sobre as complexidades, resultados e problemáticas da interação dos cidadãos com algumas substâncias como o álcool, crack, cigarro, cocaína, etc.

Quando ingressei na universidade, direcionei-me ao estudo do Direito Constitucional, Direito Criminal, Psicologia Jurídica, Sociologia e Criminologia com o objetivo de contribuir com a vida dessas pessoas, ou seja, que elas alcançassem uma vida mais saudável e digna. Ao longo do curso, tive um impulso potente do Lapsus – Laboratório de Pesquisa e Extensão em Subjetividade e Segurança Pública.

Assim, sob a orientação de professores como Nelson Gomes Jr, Gênesis Cavalcanti, Roberto Efrem, Lucas Oliveira, Felipe Negreiro, Ana Clara Montenegro, dentre outras, percebi que a planta medicinal Cannabis possui potencial enorme potencial de redução de danos para a interação adoecida com aquelas substâncias consumidas pela minha comunidade, além do gigantesco potencial de cura para diversas doenças como a Depressão, Ansiedade, Câncer, Esclerose Múltipla, Esquizofrenia, Parkinson, Autismo, Alzheimer, Artrose, Artrite, Endometriose, Epilepsia, dentre outras.

Logo, no fim do curso em trabalho monográfico propus a descriminalização ou legalização da Cannabis no Brasil, tendo em vista a enorme massa de cidadãos e cidadãs presas atualmente em decorrência da interação com essa planta. Na pesquisa, compreendi que o judiciário, por regra, encarcera usuários de cannabis como traficantes sem examinar minimamente se aquela interação com a planta é medicinal.

A partir de então, decidi que advogaria pelo propósito da cura da sociedade, através da Cannabis e de outras plantas medicinais.

GST – Como um advogado criminalista, como você costuma atuar na pauta da luta pela legalização e liberação da Cannabis Medicinal?

AA – Existem várias frentes, uma delas é a assessoria para a criação de associações de cultivo, pesquisa e fomento à Cannabis medicinal; outro caminho são os habeas corpus coletivos ou individuais preventivos para o cultivo caseiro e legal de Cannabis Medicinal, ou seja, aquela pessoa ou conjunto de pessoas que possuem doença tratável com maconha medicinal e sem condições financeiras de importar o produto ou se associar provocam o judiciário, através do meu trabalho, objetivando alcançar salvo conduto para plantio e extração de óleo da Cannabis em sua residência.

Também realizo palestras e formações para conscientização, fomento e expansão ao o tema, onde dialogo com vários profissionais da área acadêmica, psicológica, médica, agroecológica, parlamentar, empresarial, etc. Assim, vamos construindo uma teia de apoiadores em prol da cannabis medicinal.

GST – Como um paciente pode usar seus serviços? E no caso de uma empresa/plano de saúde, como podem usar seus serviços?

AA – A potencialidade da Cannabis para a cura de diversas comorbidades é um fato, uma realidade. Por conseguinte, aquele cidadão brasileiro, por força da Constituição Federal e seus ditames sobre liberdade de associação e direito à saúde, é dotado da capacidade de plantar seu próprio remédio. Funciono como uma ponte entre o desejo do cidadão e as diretrizes da Constituição agindo com um facilitador jurídico em prol da saúde.

Existe também o trabalho de urgência, quando algum usuário jardineiro de cannabis medicinal sem salvo conduto, ou seja, sem permissão para o cultivo e assim em desobediência civil, é pego em flagrante pelos agentes públicos e conduzido, sob a acusação de tráfico de drogas. O trabalho dentro da seara policial e judicial é intenso e objetiva manter a liberdade do cidadão provando que seu cultivo não tem relação com tráfico, mas com o direito constitucional à saúde.

O poder de cura da planta também impacta a perspectiva econômica e atrai os olhos de investidores e empresas, haja vista as excelentes condições de cultivo em grande parte do território brasileiro. Assim, trabalho também como elo consultivo entre essas expectativas empresariais e as possibilidades do cenário atual do mercado canábico brasileiro.

Advogado criminalista Arthur Ângelo debate questões ligadas à Cannabis, ao sistema carcerário e às políticas de exclusão

GST – Você acredita que há uma seletividade/preferência hoje, no Brasil, sobre quem tem direito a acesso à cannabis medicinal? Se sim, a que você atribui essa seletividade?

AA – Os estudos da Criminologia expõem muito claramente os efeitos dos mais de trezentos anos de escravidão no Brasil e o racismo estrutural enraizado numa perspectiva global. Chamamos o lento fenômeno brasileiro de liberação da Cannabis de legalização silenciosa e com isso seletivo. Repete um padrão advindo das raízes do proibicionismo dos Estados Unidos dos anos sessenta que influenciou intensamente a política de drogas brasileira.

Este padrão divide os cidadãos conforme sua classe social e racismo, com isso, a depender destes estereótipos aquele flagrado em contato com a cannabis é distribuído para uma área específica. Ou seja, negros e indígenas pobres são considerados traficantes e levados à seara criminal; brancos ricos são classificados como enfermos e encaminhados à área medicinal.

O resultado deste padrão é visualizado muito nitidamente em aberrações jurídicas onde pessoas são presas, por exemplo, com 5 gramas de maconha para consumo próprio e permanecem presas por vários anos perante acusação de tráfico de drogas. O questionamento que temos é: quantas pessoas presas por serem flagradas com um baseado foram acusadas de tráfico e presas como traficantes e quantas dessas possuem algum grau intenso de ansiedade ou depressão e buscavam naquela planta um alívio?

O que busco é uma liberação democrática da planta medicinal cannabis, levando em consideração, por exemplo, a delicada situação da saúde mental do jovem negro que é aquele que mais se suicida, muitas vezes em decorrência de severa depressão adquirida por problemáticas da exclusão social, econômica e preconceito. Assim um acesso à saúde pautado pela igualdade.

GST – Você acredita que existe uma relação na posição de atraso em que o Brasil se encontra no assunto liberação da Cannabis Medicinal com o problema de racismo estrutural no país? Por que?

AA – A Cannabis foi uma planta trazida por negros da África ali era chamada, dentre diversos outros nomes como fumo de angola. Além disso, possui intimidade ritualística com vários indígenas do nosso território, fato que pode ser atestado, também, no excelente documentário disponível no Youtube chamado Dirijo.

Curta metragem mostra o panorama do antigo e extinto uso de Cannabis Sativa entre os anciães Mura de outrora, quando os velhos que hoje nos falam eram apenas curumins. Uma ilustração da passagem do tempo, das mudanças dos costumes e das relações sócio-ambientais.

O Direito Penal é seletivo e instrumentalizou o proibicionismo com o objetivo de encarcerar populações indesejadas pelas classes dominantes. A carga histórica demonizou a planta e dificulta, com isso, a expansão da cura através da cannabis. Já vi idosas com fortes dores nos joelhos após eu ofertar  a possibilidade do óleo canábico afirmarem que prefeririam morrer com essas dores.

GST – Os tempos de negacionismo que o país enfrenta tem impactado no âmbito jurídico no que diz respeito à cannabis medicinal? Seja atrasando a luta pela liberação de produção, cultivo e habeas corpus, ou distanciando famílias de um benefício que eles teriam direito? Ou essa é uma pauta que progride independente do cenário do país?

AA – Com certeza o negacionismo impacta negativamente o avanço da pauta. Recentemente o chefe do poder executivo classificou como porcaria o projeto de lei 399 que busca regular à Cannabis Medicinal desconsiderando assim a possibilidade de cura de milhões de cidadãos brasileiros dentre eles protegidos por legislação específica como idosos, muito impactados Câncer e Parkinson; e crianças profundamente acometidas pelo autismo e epilepsia.

GST – Em abril desse ano, houve uma invasão da polícia na fazenda de uma associação que cultiva Cannabis com fins medicinais (a Apepi). Que tipo de descumprimento da lei esse tipo de invasão se configura? Que atitude a parte lesada pode tomar, e quais as possíveis consequências?

AA – A Apepi vem travando uma disputa jurídica intensa, anteriormente em desobediência civil, alcançou a autorização para o cultivo e extração do óleo da cannabis através de liminar. Contudo, após recurso da ANVISA a liminar caiu e os membros voltaram a desenvolver suas atividades em risco.

Dentre as situações vividas no trâmite do processo está o despacho do juízo competente para averiguar as imediações da Associação. Como a ordem partiu do judiciário há alicerce protetivo às atitudes da polícia pelo caráter de cumprimento de dever legal, todavia há relatos de excessos no exercício policial. Excessos em situações de flagrante podem gerar a nulidade do processo no âmbito criminal e indenizações no âmbito cível.

GST – Como advogado, você acredita que o descobrimento do uso medicinal de outras drogas (ex: psicodélicos) pode ajudar a acelerar o processo da luta pela legalização da cannabis medicinal no Brasil?

AA – A necessidade de legalização e descriminalização do cultivo, interação, uso e consumo de plantas medicinais no Brasil é urgente não só pelo caráter medicinal, mas também por respeito a práticas culturais e religiosas e profundas problemáticas sociais como o super encarceramento em massa.

Com certeza o uso medicinal das plantas de poder como ayahuasca e os diversos rapés e a interação com os cogumelos, por exemplo, soma força ideia de cura médica pautada em perspectivas não danosas ao corpo humano, em contrapartida ao que se tem atualmente como legal a exemplos dos fármacos fortíssimos que possuem desastrosos efeitos colaterais.

GST – Legislações de outros países tem auxiliado no embasamento do debate jurídico sobre a legalização da cannabis medicinal no Brasil? Se sim, quais e em quais pontos?

AA – Com certeza, a legalização da Cannabis com fins medicinais e até mesmo sociais é uma realidade em dezenas de países pelo mundo que se beneficiam ativamente com a potencialidade de cura da planta, mas também com as amplas possibilidades de arrecadação de impostos e criação de postos de trabalho do setor econômico relacionados à cannabis. Em trabalho monográfico vinculado à UFPB apresentei os resultados no Uruguai, Estados Unidos e Portugal reforçando as incontáveis possibilidades sociais, medicinais, econômicas e sociais da planta.

GST – Você vê com frequência casos de pessoas enquadradas injustamente no artigo 33? Destas, algumas já foram enquadradas por fazer uso medicinal? Se sim, por que você acredita que isso acontece?

AA – Incontáveis vezes. A lei de drogas não traz uma diferenciação nítida sobre qual prática configura uso e tráfico. Não possui, por exemplo, uma quantidade mínima. Essas circunstâncias criam aberrações jurídicas como a prisão de milhares de cidadãos com ínfima quantidade de maconha.

Vários jardineiros já foram presos também por realizarem o seu cultivo medicinal. Uma das exigências a configuração de um estado democrático de direito é que o direito penal advindo do Estado não seja mais violento que a prática delitiva a reflexão que fica é: o que é mais violento cultivar algumas plantas medicinais em casa ou manter um cidadão encarcerado por décadas pelo porte de uma planta medicinal?

* Arthur Ângelo da Silva é Advogado criminalista, indígena, formado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. É Pesquisador abolicionista em Laboratório de Pesquisa e Extensão em Subjetividade e Segurança Pública (UFPB), Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional. Expositor em Mesa Redonda “Perspectivas de produção para pesquisa com Cannabis na Agronomia”, atua como Consultor Jurídico em dezenas de Cultivos de Cannabis Medicinal. Arthur também é autor do trabalho monográfico “Legalização e descriminalização das drogas: modelos alternativos de oposição à política proibiciocionista de encarceramento em massa” – arthur.as.jus@gmail.com

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