Cannabis Monitor: conhecer narrativas e compor dados sobre a Cannabis é a missão de um historiador

Por Thiago Ermano | 23 de outubro de 2020

O canal Cannabis Monitor Brasil nasceu a partir do interesse pessoal do historiador e pesquisador Gustavo Maia, e hoje cataloga milhares de notícias sobre cannabis que são produzidas a partir da visão da imprensa e públicos afins da planta no Brasil.

Ouvido pelo site Green Science Times recentemente, nos contou que o objetivo dele é realizar pesquisas e análises sobre as narrativas em disputa nesta temática. Gustavo é formado em História e mestrando em História Social pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), onde pesquisa as representações da maconha (e do maconheiro) na imprensa nacional.

Gustavo é um dos idealizadores do “Maconhômetro”, um podcast do Cannabis Monitor Brasil criado por ativistas e pesquisadores do tema, para destacar as principais notícias canábicas da semana e oferecer, ainda, debates qualificados, contextualizados e aprofundados sobre um ou mais assuntos canábicos – sempre com repercussão e relevância pública no Brasil. Acompanhe a entrevista na íntegra:

Página inicial do canal Cannabis Monitor | Ilustração

GST: Qual era o objetivo inicial do seu projeto acadêmico, que acabou por se tornar altamente relevante para interessados no assunto ‘cannabis’?

Meu objetivo inicial era comparar as representações do passado com as do presente. Uma vez que comecei o monitoramento e a catalogação, optei por publicitar em uma página no Instagram, em vez de guardar só pra mim. Deste modo, outras pessoas também interessadas no tema poderiam ter acesso facilitado às informações.

A iniciativa teve boa aceitação e, com o passar do tempo, o crescimento orgânico da página foi um estímulo para a produção de conteúdo próprio, para além do monitoramento. Com a ajuda de vários colaboradores, criamos então o podcast Maconhômetro, com proposta de repercutir os destaques do noticiário canábico brasileiro pela perspectiva de ativistas e especialistas no tema, e também realizamos coberturas de eventos canábicos em vídeo, documentando os pontos de vista dos atores envolvidos, organizadores, colaboradores e público.

GST: O que seus estudos revelam, preliminarmente?

Minha pesquisa propõe uma investigação mais aprofundada sobre como se consolidou historicamente o processo de cristalização de um imaginário social negativo e criminalizante em relação à maconha e seus usos no Brasil, a partir da segunda metade do século XX.

Parto da perspectiva que implica a imprensa como uma força ativa na história da modernidade, atuante na constituição de modos de vida, perspectivas e consciência histórica, presente no cotidiano social disseminando pontos de vista sobre a compreensão da realidade imediata, buscando modelar comportamentos e formar opiniões sobre determinados eventos políticos ou fenômenos sociais.

Pretendo com a pesquisa compreender como as representações da maconha e seus usuários em jornais brasileiros, amplamente ancoradas em um discurso médico-científico moralista e racista desenvolvido nas primeiras décadas do século XX no país, contribuíram decisivamente para a disseminação e consolidação de um estigma social associado aos mesmos, que duram até os dias de hoje.

(Entrevista com o comissário de polícia do Rio de Janeiro – Jornal Correio da Manhã, 15/9/1951)

Compreender esse processo pode possibilitar uma melhor leitura sobre o momento atual, das primeiras décadas do século XXI, onde vivemos uma ampliação de narrativas em torno do tema, para além das páginas policiais, e relacionadas à falência do modelo proibicionista, à descriminalização e desconstrução de mitos forjados e impulsionados durante o século XX.

No Cannabis Monitor, temos feito um trabalho de compilação dos dados das notícias e eventos monitorados, de modo a compreendermos com maior clareza como está se desenvolvendo o debate público através dos veículos de comunicação na internet, portais, jornais, revistas e blogs.

GST: Quais são os dados mais relevantes pode nos trazer?

Nos últimos 9 meses, a média de notícias catalogadas no Cannabis Monitor é cerca de 300 por mês e de veículos que publicam sobre o tema em torno de 130. Das mais de 10 categorias em que classificamos as notícias, se destacam:

  • “Medicinal” (27% na média mensal);
  • “Mercado” (17%) e;
  • “Política” (15%).

Quanto a origem das notícias, 58% é a média de notícias nacionais contra 42% de internacionais.

Mensalmente publicamos um boletim de dados referentes às notícias e eventos monitorados.

O relatório traz informações sobre:

  • A quantidade de notícias sobre cannabis monitoradas no mês
  • A quantidade de veículos que publicaram e os que mais publicaram
  • Origem das notícias catalogadas (se nacionais ou internacionais)
  • Categorização das notícias em temas e seus percentuais
  • A quantidade de eventos sobre cannabis monitorados no mês
  • Os tipos de eventos e as cidades onde ocorreram

Importante destacar que, por escolha editorial, não monitoramos as notícias referentes à prisões, ações e operações policiais, com exceção das muito significativas, como apreensões recordes de milhares de toneladas ou de plantações com milhares de pés ou prisões/julgamentos de grandes líderes do mercado clandestino ou que fujam ao convencional.

As notícias policiais sobre as investidas repressivas do Estado contra a produção, comércio e consumo de maconha ainda são as mais publicadas nos veículos brasileiros. São centenas de novas notícias diárias sobre o combate ao tráfico de drogas envolvendo maconha, prisões e apreensões. Estamos interessados em monitorar as notícias que tratam da cannabis para além do crime e das páginas policiais.

GST: Quem financia esse trabalho de inteligência, e quem pode colaborar?

O Cannabis Monitor não possui nenhum tipo de financiamento externo até o momento e todos os custos que tivemos até agora saíram do meu próprio bolso ou de colaboradores. Todos que colaboram com o CM, nas áreas de design, web, vídeos e produção de podcasts, por exemplo, o fazem de maneira voluntária por verem relevância no projeto.

Buscando maneiras de gerar receita e tornar o CM sustentável, criamos uma loja de livros sobre a cannabis no nosso site e também lançamos uma campanha de financiamento coletivo na plataforma Apoia.se. Quem curte o trabalho, vê relevância e tem possibilidade, pode contribuir com qualquer quantia.

GST: Como enxerga o papel dos canais de mídias que surgem para gerar informações sobre cannabis no brasil? Podem ajudar, de alguma forma, a incentivar regulamentações e legislações sobre cannabis?

Vejo como algo positivo e muito importante. Há mais de uma década que busco e consumo informação sobre cannabis na internet e vi o surgimento de veículos pioneiros no segmento como o Hempadão, o Smoke Buddies e o Maryjuana, por exemplo, produzindo jornalismo canábico com propostas mais voltadas para usuários sociais, para a cultura canábica e o ativismo.

Recentemente, diversos novos veículos especializados estão surgindo e trazendo outras propostas, voltadas principalmente para a cannabis medicinal e seu mercado emergente. São exemplos o Green Science Times, o Sechat, o Cannabis & Saúde e o Cannalize.

Veículos tradicionais, da mídia dita hegemônica, também voltaram seus olhos para a maconha criando colunas/editorias especializadas no tema, como o jornal Folha de SP e as revistas Veja e Época.

Acompanho com interesse os conteúdos e narrativas que estão sendo publicados e acredito que sim, o crescimento de veículos produzindo conteúdo honesto sobre maconha contribuem e muito para a desconstrução do estigma e uma maior normalização do tema na sociedade.

A imprensa brasileira teve papel crucial no processo de demonização da maconha, de construção, manutenção e cristalização de um imaginário social extremamente negativo ao disseminar, por décadas, mitos e mentiras em relação à planta, seus efeitos e seus usuários. É imperativo que se dediquem a desconstruir e reduzir os danos que por décadas deram suporte, através de sensacionalismo e fake news.

Arquivo: Revista A Noite Ilustrada, do jornal A Noite – Rio de Janeiro, 5/10/1948

É interessante ver surgir nos últimos anos uma mudança de paradigma no tratamento dado à cannabis pela imprensa. No entanto, enquanto a maconha, para além das páginas policiais, como pauta jornalística constante é uma novidade, o seu ativismo é antigo no Brasil e me preocupa o baixo índice de notícias produzidas trazendo as perspectivas do campo ativista. De acordo com nossos dados, a média dos últimos 9 meses de publicações nesta categoria é de 2,6%.

Vejo muita excitação com o potencial bilionário de um mercado legal e regulado de cannabis, mas o debate profundo e preocupado com uma regulamentação nacional democrática, ancorada em políticas de reparação de injustiças sociais e raciais históricas causadas pelo proibicionismo, ainda está restrito aos espaços de ativismo. Eu gostaria de ver os veículos de imprensa disseminando essas narrativas e promovendo esse debate tanto quanto promovem as movimentações das grandes empresas internacionais, os índices de lucratividade e opções de investimentos deste mercado, por exemplo.

São muitas as narrativas e interesses em disputa neste campo e eu me pergunto se haverá um “mea-culpa” de veículos tradicionais sobre a forma como contribuíram para consolidação do estigma, sendo porta vozes por tanto tempo do proibicionismo. Também questiono se os novos veículos estão comprometidos a pautar cannabis sem negligenciar questões raciais, de desigualdades estruturais, controle social através da violência contra determinados grupos e territórios, encarceramento em massa, entre outros resultados nefastos da falida política de guerra à sua produção, comércio e consumo. Se darão cada vez mais visibilidade às narrativas dos ativistas, coletivos antiproibicionistas e, principalmente, dos mais afetados pela proibição da maconha, jovens, negros, periféricos, egressos do sistema carcerário e movimentos sociais de favelas.

Vítimas da violência

No Brasil, a proibição da maconha engloba no mesmo saco a criança com epilepsia impedida de ter qualidade de vida por não ter acesso à planta que pode, comprovadamente, zerar suas convulsões e a criança favelada impedida de viver de fato, alvejada por tiros de fuzil no caminho para a escola. Então, esse debate precisa ser amplo e verdadeiramente democrático. Como a legalização brasileira da maconha pode ser uma ferramenta de transformação social e reparação de desigualdades históricas?

O debate está avançando muito no Brasil, presente nas instituições de poder, no congresso nacional e em casas legislativas estaduais e municipais, no STF e tribunais inferiores, na Anvisa, nas universidades, nos movimentos sociais e redes sociais. A imprensa tem papel fundamental nesse processo e o Cannabis Monitor está de olho nela.

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