Opinião: A nova resolução do CFM e o retrocesso em relação ao uso medicinal da Cannabis

Por Carlos Roberto Siqueira Castro [1] e Amauri Saad [2] | 14 de novembro de 2022

O Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou, em 14.10.2022, a Resolução CFM nº 2.324, que aprova o uso do canabidiol para o tratamento de epilepsias da criança e do adolescente refratárias às terapias convencionais na Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut e no Complexo de Esclerose Tuberosa (art. 1º). O que há de novidade nessa resolução — e uma novidade preocupante — é o seu art. 3º, que proíbe aos médicos “a prescrição de canabidiol para indicação terapêutica diversa da prevista” na resolução (inc. I) e “ministrar palestras e cursos sobre o uso do canabidiol e/ou produtos derivados da Cannabis fora do ambiente científico, bem como fazer divulgação publicitária” (inc. II).

Tal medida surpreendeu não apenas à classe médica, mas também às empresas que têm investido na cadeia de produção e fornecimento do medicamento e, sobretudo, a todos aqueles que, com a devida orientação profissional, vêm fazendo uso do canabidiol para o tratamento de diversas doenças, em muitos casos com indiscutível sucesso clínico. A substância, usada, por exemplo, como anti-convulsivo (como a própria resolução do CFM reconhece), pode ser uma “opção útil e relativamente não-tóxica, para o tratamento de ansiedade, insônia e dor crônica”[3],  e para tratamento dos sintomas da Doença de Parkinson, entre muitas outras enfermidades[4].

Reconhecendo esta realidade, e o avanço das pesquisas sobre a substância no mundo todo, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, editou, em 09.12.2019, após um cuidadoso processo de avaliação técnica, a Resolução ANVISA nº 327, dispondo sobre os procedimentos para a concessão da autorização sanitária para a fabricação e a importação, bem como os requisitos para a comercialização, prescrição, a dispensação, o monitoramento e a fiscalização de produtos de Cannabis para fins medicinais. De acordo com o art. 5º da resolução em comento, os “produtos de Cannabis podem ser prescritos quando estiverem esgotadas outras opções terapêuticas disponíveis no mercado brasileiro”.

É nesse cenário regulatório que o CFM pretende intervir, por meio da Resolução CFM nº 2.324/2022, que padece, conforme se verifica a seguir, de variadas (e graves) inconsistências.

A primeira das inconsistências da Resolução CFM nº 2.324/2022 tem a ver com a evidente incompetência do CFM para disciplinar, ainda que in abstracto, a prescrição de medicamentos. Nos termos da sua lei de regência (Lei nº 3.268/1957), os conselhos federal e regionais de medicina são “são os órgãos supervisores da ética profissional em toda a República e ao mesmo tempo, julgadores e disciplinadores da classe médica, cabendo-lhes zelar e trabalhar por todos os meios ao seu alcance, pelo perfeito desempenho ético da medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exerçam legalmente”.

Não há como predicar desse feixe de competências — que diz respeito à fiscalização da classe médica quanto ao atendimento dos preceitos da ética profissional, de um lado, e quanto ao atendimento das demais regras legais incidentes sobre a profissão, de outro —, uma competência autônoma para inovar originariamente na ordem jurídica, criando obrigações atinentes ao núcleo da própria profissão médica (avaliação de pacientes, diagnóstico e prescrição de medicamentos).

O zelo pela ética profissional e a fiscalização sobre a classe médica, competências de que está investido o CRM, não autorizam, em nossa opinião, a edição, pela entidade, de regulação substantiva acerca do exercício daquela profissão. Fazendo um paralelo com outra entidade de representação profissional, é como se, mutatis mutandis, a OAB pretendesse impor aos advogados quais teses podem ou não ser utilizadas em cada caso concreto, o que evidentemente desborda da fiscalização ética e do zelo pela categoria profissional representada pela entidade.      

A partir dessa constatação, verifica-se um problema mais grave, que se relaciona à impossibilidade de se pretender impor regras disciplinadoras do núcleo duro de profissões por atos infralegais. O art. 5º, XIII, da Constituição Federal, institui o “livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. O referido dispositivo constitucional exige, como se sabe, lei em sentido formal — lei ordinária —, repelindo o uso de ato administrativo (ainda que de caráter regulamentar) com a finalidade de impor obrigações substantivas ao exercício de profissões. Trata-se, portanto, de um caso típico de reserva de lei, que não pode ser transgredido pelo CFM.

A Resolução CFM nº 2.324/2022, ao vedar a prescrição do canabidiol para outros tratamentos que não aqueles indicados no seu art. 1º, e ao restringir a discussão sobre o tema a “eventos científicos”, acaba por ferir, além da liberdade do exercício de profissão (art. 5º, XIII), já acima referida, também a liberdade de expressão, consagrada com ênfase no texto constitucional, que estabelece ser “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (art. 5º, IX).

Como não há uma linha que delimite o que é “ambiente científico” para fins de aplicação da Resolução CFM nº 2.324/2022, tal expressão vai adquirir o sentido que o CFM quiser lhe atribuir, o que, de si, já representa uma abertura ao arbítrio. Mas, ainda que se desconsiderasse esse problema hermenêutico, que pode ampliar ou restringir o campo para discussão sobre a matéria, a própria ideia de que um profissional está proibido de falar em público sobre algo relacionado à sua profissão (à exceção, claro, dos casos de confidencialidade, como os instituídos entre médico e paciente, advogado e cliente etc.), já denota a abusividade e o caráter inconstitucional da regra. Lido em sua literalidade, o art. 3º, II, da Resolução CFM nº 2.324/2022, impediria o médico de tratar do tema até mesmo na mesa de jantar, o que, com a devida vênia, representa um absurdo. — E o absurdo, como se sabe, é um bom termômetro da razoabilidade ou irrazoabilidade de um ato administrativo.

Não se esqueça de que a sociedade possui um amplo interesse no assunto, inclusive porque, contra o uso do canabidiol, ainda se coloca um enorme preconceito, que associa a substância ao uso recreativo de drogas ilícitas e, mesmo, ao crime organizado. Contra esses preconceitos, que podem afastar muitos pacientes de um tratamento capaz de produzir impactos positivos sobre o seu quadro clínico, é importante — na verdade, essencial — o trabalho amplo de esclarecimento, por parte da classe médica, sobretudo em eventos fora do “ambiente científico”. O que o interesse público requer, ao contrário do que parece supor o CFM, é mais, e não menos, discussão pública sobre as possíveis aplicações medicinais da Cannabis.

Ainda, a Resolução CFM nº 2.324/2022 proíbe a publicidade relacionada ao uso medicinal da Cannabis. Isto representa mais uma grave inconsistência do ato em comento, porquanto, além de violar a liberdade de expressão de todas as empresas e profissionais que atuam na cadeia produtiva e de fornecimento do canabidiol medicinal (que constitui um direito fundamental expressamente consagrado na Constituição, como se viu acima), também desrespeita as competências do CONAR – Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária, que é a entidade responsável pela disciplina da publicidade no Brasil. Uma proibição como a veiculada na Resolução CFM nº 2.324/2022 ofende todo o sistema de autorregulação publicitária que vem sendo construído no Brasil desde a década de 1970.  

Por último, há que se destacar o flagrante conflito de competências entre o CFM e a ANVISA. É, com efeito, esta última, a entidade, dotada por lei, das competências jurídicas e técnicas para autorizar o uso, produção e comercialização de medicamentos no país (Lei nº 9.782/1999, arts. 6º a 8º), e não o CFM. E tal competência, conforme acima destacado, já foi exercida por ocasião da edição da Resolução ANVISA nº 327/2019, que autoriza o uso do canabidiol quando houverem sido esgotadas outras opções de tratamento disponíveis no Brasil (art. 5º).

Naturalmente que o juízo quanto ao custo-benefício das alternativas de tratamento para cada paciente — e, portanto, quanto ao esgotamento das alternativas disponíveis — será do médico, em face de cada caso concreto, e a decisão quanto ao emprego da substância, tomada em conjunto com o paciente devidamente esclarecido. A Resolução ANVISA nº 327/2019, a nosso ver, regula satisfatoriamente o assunto, sobretudo porque faz uma ponderação equilibrada dos requisitos de saúde pública para a utilização da substância (basta ler tal resolução para verificar todos os cuidados adotados pela agência, a fim de resguardar o direito fundamental à saúde da população e garantir o uso medicinal seguro do canabidiol), sem sacrificar a necessária liberdade profissional e científica do médico.

De se ressaltar que o Supremo Tribunal Federal já assentou, no julgamento da ADI 5779 (Pleno, Rel. Min. Nunes Marques, j. 14.10.2021), que nem mesmo lei ordinária pode substituir o processo de aprovação de medicamentos reservado à ANVISA, pois “atuação do Estado por meio do poder legislativo não poderia, sem elevadíssimo ônus de inércia indevida ou dano por omissão à proteção da saúde por parte da agência reguladora, autorizar a liberação de substâncias sem a observância mínima dos padrões de controle previstos em lei e veiculados por meio das resoluções da Anvisa, decorrentes de cláusula constitucional expressa”.

Se se reconhece, às competências regulatórias da ANVISA, uma proteção contra o próprio legislador ordinário, com muito mais razão se deve reconhecer, no caso concreto, a prevalência do ato normativo editado pela agência, em face de uma resolução do CFM que com ele conflite. A reserva de administração, criada pelo Congresso Nacional quando da criação da ANVISA — uma reserva, ressalte-se, baseada na expertise técnica da agência — se aplica não apenas perante os demais poderes, mas também contra outras entidades da própria administração pública, como é o caso do CFM (que possui natureza autárquica, conforme estabelecido pela Lei nº 3.268/1957, art. 1º).

Em face de todas essas fragilidades, intrínsecas à Resolução CFM nº 2.324/2022, o CFM publicou, em 20.10.2022, um comunicado de que abriria consulta pública, a fim de colher subsídios a respeito de uma eventual revisão da resolução em comento, destacando que a mencionada resolução continuava em vigor[5]. Em 25.10.2022, veio um novo recuo: foi publicada a Resolução CFM nº 2.326, que sustou temporariamente os efeitos da Resolução CFM nº 2.324/2022, aparentemente atrelando a produção de efeitos deste ato aos resultado da consulta pública anunciada.

Tais recuos, embora bem-vindos, não resolvem a questão. A voluntária anulação da Resolução CFM nº 2.324/2022 talvez seja o melhor caminho para preservar a legalidade e a segurança jurídica de todos os interessados (médicos, pacientes e empreendedores) no assunto. A insistência em “regular” autonomamente a matéria, por parte do CFM, sobretudo se isto significar um desvio em relação à regulação editada pela ANVISA (notadamente, a contida na Resolução ANVISA nº 327/2019), poderá e, a nosso ver, deverá ensejar a oportuna intervenção do Judiciário, por provocação de qualquer interessado, a fim de reconduzir o CFM ao círculo de prerrogativas que lhe é reservado por lei.

[1] Carlos Roberto Siqueira Castro – Sócio Sênior da SiqueiraCastro Advogados. Especialista em Direito Constitucional, Administrativo, Regulatório, Licitações Públicas, Contratos Governamentais, Parcerias Público-Privadas (PPP), advocacia contenciosa estratégica, Arbitragem e Mediação. Graduou-se pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em 1972, possui mestrado (LL.M.) pela Universidade de Michigan e é Doutor em Direito Público pela UFRJ. Por suas inúmeras contribuições à profissão e ao Direito Brasileiro, recebeu da OAB, em 2020, a Medalha Rui Barbosa, a mais alta comenda da advocacia brasileira.

[2] Amauri Saad – Sócio responsável pelas áreas regulatória e de life sciences da SiqueiraCastro Advogados, em São Paulo. Doutor e mestre em Direito Administrativo pela PUC/SP. LL.M. pela University of Toronto. Autor, entre outras, das obras: Regime jurídico das políticas públicas (São Paulo: Malheiros, 2016); Do controle da administração pública (São Paulo: IASP, 2017); Autorização de serviço público (Em coautoria com Sergio Ferraz. São Paulo: Malheiros, 2018); Liberdade das formas nas contratações públicas (Porto Alegre: Sérgio Fabris, 2019).

[3] Cf.: Peter Grinspoon, “Cannabidiol (CBD): What we know and what we don’t”, Harvard Health Publishing (Harvard Medical School), 14.09.2021. Disponível em: https://www.health.harvard.edu/blog/cannabidiol-cbd-what-we-know-and-what-we-dont-2018082414476

[4] Cf. Lucile Rapin et. al. “Cannabidiol use and effectiveness: real-world evidence from a Canadian medical cannabis clinic”, Journal of Cannabis Research (2021) 3:19. Disponível em: https://doi.org/10.1186/s42238-021-00078-w.

[5] Cf. https://portal.cfm.org.br/noticias/consulta-canabidiol/.

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