Guia para ensaios clínicos com Cannabis Sativa L.

Por Agatha Cardoso | 06 de junho de 2023

Esse conteúdo faz parte da série “Cannabis: Conhecimentos Científicos made in Brazil”, em que o site Green Science Times reproduzirá artigos técnicos e científicos, produzidos por especialistas que compõem o Grupo de Trabalho Farmacêutico da Associação Brasileira das Indústrias de Cannabis (ABICANN).

Nos créditos, acima e no final da página, será possível que você conheça um pouco mais sobre os perfis destas e destes profissionais, que contribuem para orientação de interessados em pesquisas, ciências, saúde e inovações com a planta Cannabis sativa. Acompanhe o artigo desta edição:

Autores: Lindomar de Farias Belém, Lucas Ravelly Gomes Martins e Sabrina de Cássia Macêdo Batista

Coordenação: Fábio de Oliveira Costa Junior

NOTA: Este guia foi desenvolvido a partir das normas regulatórias que orientam as Boas Práticas de Pesquisa Clínica (BPC) com vigência até abril de 2022, estando sujeitas a alterações pelos órgãos regulatórios constituintes (Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, e dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) do Conselho Nacional de Saúde – CNS.

  1. CONCEITOS BÁSICOS EM PESQUISAS CLÍNICAS 

De acordo com a Resolução nº 466 de 12 de dezembro de 2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que regulamenta a prática de Pesquisas em Seres Humanos, uma pesquisa neste escopo é aquela que, individual ou coletivamente, tenha como participante o ser humano, em sua totalidade ou partes dele, e o envolva de forma direta ou indireta, incluindo o manejo de seus dados, informações ou materiais biológicos. Deve ser pautada em fatos científicos e com possibilidades concretas de responder às incertezas propostas, sendo realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter não puder ser obtido por outro meio.

Ensaios clínicos são um conjunto de procedimentos conduzidos em voluntários humanos que visam investigar a segurança e a eficácia de um medicamento com base em estudos não-clínicos, por meio da farmacologia do produto (farmacocinética e farmacodinâmica), eventos adversos, dose segura, faixa etária a ser pesquisada entre outros objetivos.

A Res. CNS nº 251 de 07 de agosto de 1997 estabelece que etapa clínica de uma pesquisa é subdivida em quatro fases:

  • Na fase I são realizados testes com um pequeno grupo de participantes, em geral saudáveis, para avaliação preliminar da segurança e do perfil farmacocinético e, quando possível, um perfil farmacodinâmico de um novo medicamento.
  • Na fase II, abrangendo um grupo maior de participantes, são avaliadas questões como eficácia, segurança, dose-resposta, via de administração, efeitos colaterais (efeitos concomitantes ao esperado) e adversos (efeitos indesejáveis). 
  • A fase III é realizada com um grupo ampliado de participantes e tem como objetivo estabelecer a eficácia e a segurança do medicamento, seu risco/benefício, formulações eficazes e seguras, interações medicamentosas. A partir dos ensaios clínicos de Fase III o fármaco e/ou especialidade medicinal segue para obter o registro sanitário, fornecido pela ANVISA, condição para sua comercialização, a qual é regulada pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED). 
  • A Fase IV é conduzida para vigilância pós-comercialização, ou farmacovigilância, quando o detentor do medicamento comercializado considerar necessário ou exigido pela ANVISA, para confirmar o valor terapêutico, o surgimento de novas reações adversas e/ou da frequência dos efeitos adversos já conhecidos, proposta de novas estratégias de tratamento.
Figura 1: Fluxograma de uma pesquisa clínica de medicamentos. Fonte: Produzido pelos autores, 2022.

Nota: Cabe ressaltar que, em todas as etapas clínicas, o ensaio é submetido à ANVISA e ao  Sistema  CEP/CONEP simultaneamente.

  1. BOAS PRÁTICAS DE PESQUISA CLÍNICA 

Segundo a definição do Guia de Boas Práticas Clínicas (BPC), publicado pelo Conselho Internacional para Harmonização (ICH) em 2016, e traduzida pela ANVISA em novembro de 2019, as BPC estabelecem um padrão para o desenho, condução, execução, monitoramento, auditoria, registro, análises e relato de ensaios clínicos que asseguram a credibilidade e a precisão dos dados e resultados relatados, e a proteção dos direitos, integridade e confidencialidade dos participantes do ensaio.

O primeiro aspecto ético citado na Res. CNS nº 466/2012, trata do respeito ao participante da pesquisa em sua dignidade e autonomia, reconhecendo sua vulnerabilidade, assegurando sua vontade de contribuir e permanecer, ou não, na pesquisa, por intermédio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Todas as informações do ensaio clínico devem ser registradas, manuseadas e arquivadas de uma forma que permita sua notificação, interpretação e verificação, resguardando a confidencialidade dos registros que possam identificar os participantes. Atualmente, dados de confidencialidade de participantes de pesquisa devem seguir a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)/2018 em vigor desde 2021.

Outro fator norteador das BPC deve ser a avaliação dos riscos e inconveniências possíveis, iniciando o ensaio apenas caso os benefícios esperados justifiquem os riscos. Visando ainda garantir a qualidade dos medicamentos utilizados nos ensaios, foram desenvolvidas as Boas Práticas de Fabricação dos medicamentos (BPF), que podem ser encontradas na Instrução Normativa nº 45, da ANVISA, publicada no dia 21 de agosto de 2019, tratando das BPF complementares para medicamentos experimentais.

Todos os fatores supracitados foram pensados para promover a segurança e o bem-estar aos participantes de um ensaio clínico, sendo estas, portanto, a prioridade, prevalecendo sobre os interesses da ciência e da sociedade.

Figura 2: Agentes envolvidos nas boas práticas de pesquisa clínica. Fonte: Produzido pelos autores, 2022
  1. DOCUMENTOS ESSENCIAIS NA PESQUISA CLÍNICA E BOAS PRÁTICAS DE DOCUMENTAÇÃO  

Vários documentos são necessários para a submissão de um ensaio clínico. Sob o aspecto ético, o conjunto de documentos que formam o Protocolo da Pesquisa deve ser submetido como orientado pela Res. CNS 466/12. Para cumprimento das atividades regulatórias do Protocolo de Pesquisa, a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) ANVISA, n° 09, de 20 de fevereiro de 2015, a qual dispõe sobre o regulamento para a realização de ensaios clínicos com medicamentos no Brasil, deve ser seguida em qualquer das fases clínicas acima mencionadas.

Em relação ao aspecto ético, um documento que se destaca para o recrutamento de voluntários da pesquisa é o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), por meio do qual são explicitados direitos e deveres do participante. O TCLE é o documento necessário e suficiente para todas as informações inerentes à pesquisa, em linguagem leiga, objetiva e de fácil entendimento, para o mais completo esclarecimento sobre a pesquisa a qual o voluntário se propõe participar. Deve ser revisado e atualizado de acordo com o surgimento de novas informações relevantes, estando sujeito à aprovação/parecer favorável do Sistema CEP/CONEP antes da sua utilização.

Não existem modelos fixos para a elaboração de um TCLE, variando as informações de acordo com o tipo de pesquisa a ser conduzida. Todas as informações necessárias para o desenvolvimento de um TCLE podem ser encontradas no capítulo IV da Res. CNS 466/12.

Para submissão de um ensaio clínico, o proponente da pesquisa conta com a Plataforma Brasil (https://plataformabrasil.saude.gov.br/login.jsf#), uma base nacional e unificada de registros de pesquisas envolvendo seres humanos para todo o Sistema CEP/CONEP, por meio da qual as pesquisas são acompanhadas em seus diferentes estágios, desde sua submissão até a aprovação final.

A primeira etapa da submissão de um projeto de pesquisa na Plataforma Brasil é feita ao Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição, o qual poderá emitir parecer aprovado, pendente ou não aprovado. Quando o projeto de pesquisa envolve Áreas Temáticas Especiais, como disposto na Res. CNS 466/12, capítulo IX, o projeto de pesquisa também é avaliado pela CONEP. A Norma operacional 001/2013 explicita os seguintes documentos e os prazos de tramitação no Sistema:

Protocolo de pesquisa: conjunto de documentos contemplando a descrição da pesquisa em seus aspectos fundamentais e as informações relativas ao participante da pesquisa, à qualificação dos pesquisadores e a todas as instâncias responsáveis.

– Folha de rosto: documento gerado pelo próprio sistema da Plataforma Brasil e faz parte do Protocolo da Pesquisa. O pesquisador e o responsável pela instituição proponente devem datar e assinar a Folha de Rosto, por meio da qual atestam suas responsabilidades com a condução da pesquisa. 

  1. ETAPAS DO ENSAIO CLÍNICO

Triagem: Para a seleção dos participantes de um ensaio clínico, são levados em consideração alguns critérios que tratam da capacidade do voluntário para participar do estudo. São os critérios de inclusão e exclusão que variam conforme a pesquisa e a condição do participante a ser recrutado. 

Etapa do tratamento: Uma vez elegível, o tratamento a ser administrado inclui esclarecimentos dos medicamentos, doses, esquemas de dosagem, vias/modos de administração e os períodos de tratamento, medicamentos e tratamentos permitidos (incluindo medicação de resgate) e não permitido(s) antes e/ou durante o ensaio.

Etapa de acompanhamento pós-tratamento: O monitoramento ocorre após final de tratamento. Nesta etapa é avaliado qual o tratamento trouxe benefício ao participante, o qual deve ser garantido às expensas do patrocinador do estudo ou da instituição, caso não haja um patrocinador formal, os eventos adversos e o acompanhamento contínuo até que tal benefício não seja mais constatado.

  1. PESQUISA CLÍNICA COM FITOTERÁPICOS E CANABINÓIDES 

Medicamentos experimentais utilizados em ensaios clínicos devem seguir regras específicas de boas práticas de fabricação, regras estas que são complementares às descritas na RDC 301 de agosto de 2019 da ANVISA, podendo ser encontradas nas instruções normativas IN nº 45/2019 e na mais recente IN nº 130/2022, que tratam das boas práticas de fabricação de medicamentos experimentais e complementares fitoterápicos respectivamente.

Acordada na IN nº 130/2022, a definição de fitoterápico é dada pelo produto obtido de matéria-prima ativa vegetal, exceto substâncias isoladas, com finalidade profilática, curativa ou paliativa, incluindo medicamento fitoterápico e produto tradicional fitoterápico, podendo ser simples, quando o ativo é proveniente de uma única espécie vegetal medicinal, ou composto, quando o ativo é proveniente de mais de uma espécie vegetal. Logo, os produtos de Cannabis a serem utilizados em ensaios clínicos, podem ser chamados de fitoterápicos experimentais (significa que o medicamento está sendo estudado e ainda não foi aprovado pela ANVISA para uso e comercialização).

A tratar da produção do fitoterápico experimental, normas específicas podem ser aplicadas de acordo com a fase do processamento, podendo ser aplicadas a regulamentação da atividade agrícola, as Boas Práticas de Fabricação de insumos farmacêuticos ativos ou as Boas Práticas de Fabricação de medicamentos. 

Quadro 1 – Aplicação das boas práticas de fabricação de fitoterápicos. Fonte: Retirado do anexo da IN nº130, ANVISA, 2022.
  1. TENDÊNCIAS DAS PESQUISAS CLÍNICAS

Os fitoterápicos à base de Cannabis sativa para serem lançados no mercado necessitam de regulamentação e concessão pela ANVISA; seguir as instâncias éticas da Res. CNS 466/2012, ou outras que vierem a substituí-las ou adicionadas. Antes disso, é necessária a correta identificação botânica, a padronização na produção de lotes, passar pelas fases I, II, III, ter indicações terapêuticas claras e definidas, comprovação de eficácia e segurança, podendo também ter protocolos clínicos elaborados para cada indicação de uso. 

Regulamentação da indicação, uso clínico, prescrição: A RDC N º 327/2019 no seu Art. 1º dispõe sobre autorização sanitária para fabricação, importação bem como requisitos para comercialização, prescrição, dispensação, monitoramento e fiscalização de produtos para fins medicinais.   

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

  1. ABRACRO. Etapas de uma pesquisa clínica, 2021. Disponível em: <https://abracro.org.br/etapaspesquisaclinica>. Acesso em: 10 de novembro de 2021.
  2. OPAS; OMS. Boas Práticas Clínicas, documento das Américas. Organização Panamericana de Saúde, Organização Mundial de Saúde, Rede Pan-Americana para Harmonização da Regulamentação Farmacêutica. República Dominicana, 2005.
  3. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Instrução Normativa n. 45, de 21 de agosto de 2019. Dispõe sobre as Boas Práticas de Fabricação complementares a Medicamentos Experimentais. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil]. Brasília, 21 de agosto de 2019.
  4. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n. 251, de 7 de agosto de 1997. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil]. Brasília, 7 de agosto de 1997.
  5. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n. 466, de 12 de dezembro de 2012. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil]. Brasília, 12 de dezembro de 2012.
  6. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução n. 09, de 20 de fevereiro de 2015. Dispõe sobre o Regulamento para a realização de ensaios clínicos com medicamentos no Brasil. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil]. Brasília, 20 de fevereiro de 2015.
  7. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução n. 301, de 21 de agosto de 2019. Dispõe sobre as Diretrizes Gerais de Boas Práticas de Fabricação de Medicamentos. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil]. Brasília, 21 de agosto de 2019.
  8. ICH (International Council for Harmonisation of Technical Requirements for Registration of Pharmaceuticals for Human Use). Integrated addendum to ICH E6 (R1): Guideline for Good Clinical Practice. E6 (R2). v. Step4; 2016.
  1. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13709.htm>. Acesso em: 25 de maio de 2022.
  2. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Instrução Normativa n. 130, de 30 de março de 2022. Dispõe sobre as Boas Práticas de Fabricação complementares a Fitoterápicos. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil]. Brasília, 30 de março de 2022.

Este texto é uma contribuição de conteúdo para melhor direcionamento dos interessados no tema. Não foi exigido metodologia ABNT, podendo ou não ser adotado pelos autores. Foi orientado um texto que possa guiar, nortear o leitor para se desenvolver e dar sequência no assunto. Podendo haver contato com os autores para parcerias, sugestões. A ABICANN se coloca como uma facilitadora para o desensenvolmento técnico científico sobre cannabis e canabinoides pois temos a missão de auxiliar o setor.

Autora:

Lindomar de Farias Belém, PhD

lindomardefariasbelem@servidor.uepb.edu.br

Revisores:

Ednilza Dias , CRO, PPD

https://www.linkedin.com/in/ednilza-dias-6aa93bb1/

Leonardo de Souza Teixeira, ICF

https://www.linkedin.com/in/leonardo-de-souza-teixeira-5934b228/

Nínive Pinto, UFF

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Milene Borges, USCS

milena.borges@online.uscs.edu.br 

Camila Abreu, CRO, Achè Laboratório

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